Mestre Pastinha – Uma vida pela Capoeira
Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, nasceu em 1889, nos morros da cidade de Salvador, filho de um comerciante espanhol e de uma ex-escrava baiana. A virada do século XX prometia uma era de revoluções no mundo inteiro, e pra capoeira não foi diferente. Pastinha conheceu a capoeira ainda criança, muito pela necessidade diária de se defender nas favelas baianas.
Pastinha conta que quem lhe ensinou a capoeira foi um velho africano, que sempre o via apanhar de um menino mais velho. Um dia, da janela da sua casa, o velho chamou Pastinha e disse que ele nunca conseguiria vencer o menino porque ele era mais velho e era maior que ele, e então o chamou pra ensinar a capoeira. Desde então, nunca mais apanhou.
A partir desse fato vale ressaltar que, por mais que teimem as novas academias de capoeira e a espetacularização da violência do MMA, a capoeira nunca foi uma arte de brutalidade ou de movimentos acrobáticos, mas, desde os seus primórdios, foi um jogo de estratégia, uma arte que se desenvolveu a partir de praticantes que sempre eram mais fracos e estavam mais desarmados que seus adversários, mas que usando a astucia e a agilidade – ou como dizia Pastinha, a mandinga – conseguiriam vencê-los. A capoeira é, portanto, a luta dos oprimidos e explorados.
Registros – que são escassos, graças ao descaso proposital dos estudiosos burgueses – afirmam que a capoeira tem o seu germe africano no N’golo, a Dança da Zebra, um combate cerimonial que representa um rito de passagem para a vida adulta das mulheres, que era praticado no sul de Angola e que realmente apresenta semelhanças com a arte atual. Quando chegou aqui no Brasil, assim como toda expressão de identidade negra, foi perseguido e massacrado, logo, se desenvolveu de maneira clandestina e defensiva, sempre a espreita do perigo iminente da repressão.
Tanto foi perseguida que se tornou a arte de desarmar policiais, de dar golpes rápidos e silenciosos, de enganar adversários e escapar ileso de situações perigosas. Ao mesmo tempo que estava intrinsecamente unida com a espiritualidade, a ritualidade e a expressão corporal e linguística do povo brasileiro. Continha sua ginga, a brincadeira, a malícia e a musicalidade: a liberdade e fluidez dos corpos e mentes. A medida que era reprimida, se tornava cada vez mais sagrada e cada vez mais praticada.
Até o final da escravidão, já havia se tornado um problema de saúde pública para o Estado burguês, principalmente nas capitais portuárias, como Rio de Janeiro e Salvador, onde se encontravam o grande aglomerado da classe trabalhadora da época. Não a toa a capoeira foi proibida dentro da Constituição brasileira, dois anos após a abolição da escravatura, em 1890.
Ali apareceu um indivíduo mal trajado,
e encostando-se a janela central do referido posto,
durante uns cinco minutos, em atitude de quem observava alguma coisa,
que decorrido este tempo, o dito indivíduo interpelando o respondente,
pediu-lhe um berimbau que se achava exposto juntamente com armas apreendidas”
PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá. Três personagens da capoeira baiana. Goiânia/Tocantins: UFT, 2002, pág. 27
Assim como todo jovem e todo trabalhador que tem seus instrumentos de arte confiscados pela polícia – como são em muitos casos de batalhas de rap e poesia, onde microfones e caixas de som são criminosamente pegos por policias – Besouro representa uma juventude que anseia por arte até os dias de hoje e representa o medo de uma burguesia que compreende o perigo de uma roda onde se troca conhecimento e experiência, onde se pode desenvolver ideais revolucionários.
Das rodas de capoeira, até os repentes das batalhas de rap e poesias nas rodas do slam resistência, todas essas manifestações perpetuam uma característica fundante da cultura brasileira: a cultura da resistência, contra a classe opressora e a favor da liberdade de expressão e de conhecimento da nossa classe. Uma cultura das trabalhadoras e trabalhadores negros e nordestinos contra o regime de exploração dos escravocratas e patrões.
A partir dos anos de 1910, Mestre Pastinha busca a emancipação da capoeira. Já reconhecido por todos os grandes mestres da Bahia, ele é proclamado por eles o guardião da capoeira, já que tinha uma visão prática e uma didática excelente para organização da capoeira, produzindo diversos manuscritos sobre a tradição da Capoeira de Angola e sua filosofia.
Porém, apesar do grande reconhecimento que Pastinha havia adquirido e da perpetuação da capoeira por todo Brasil, surge um movimento novo da capoeira nos anos 30, contrário a moral de “paz entre nós, guerra aos senhores” da capoeira tradicional. Mestre Bimba, como mentor desse novo movimento, funda a Capoeira Regional, e mescla a arte com outras lutas marciais, como karatê e jiu-jitsu – que estavam chegando ao país na época. Inclusive, numa tentativa de aproximar a capoeira das artes marciais e menos da criminalidade.
A Regional ganhou muitos adeptos, sobretudo a juventude pequeno-burguesa da época, que acabou se encantando pelos golpes mortais e os movimentos acrobáticos. Naquele período já se falava muito depreciativamente da Angola, por ser um jogo mais lento e mais estratégico. A febre da Regional levou a sua descriminalização em 1935, principalmente por conta das políticas populistas de Getúlio Vargas, que queria construir uma “arte marcial nacional”, o que anos depois levou Bimba até o Palácio Nacional para fazer uma apresentação oficial da Regional para o presidente.
Enquanto isso, Pastinha evoluía a Angola em seus modestos passos. Em 1941, fundou a mais tradicional escola de Capoeira de Angola legalizada pelo governo: o CECA (Centro Esportivo de Capoeira Angola) e de lá surgiram os mais famosos mestres angoleiros e foi frequentada por diversas personalidades da época, sendo conhecido até na África. O próprio disco Transa, do Caetano Veloso, homenageou o Mestre nessa época.
Infelizmente, em 71, sua academia foi expulsa do lugar que habitava no Pelourinho pelo governo. Pastinha e seus discípulos sofreram um golpe da Ditadura, que havia afirmado que precisaria fazer uma reforma no prédio, os retiraram de lá e nunca mais o devolveram. Hoje o local ainda é o restaurante do Senac da região, numa época de avanço dos cursos técnicos e profissionalizantes no país e de uma repressão muito forte de movimentos culturais e sociais.
Mestre Pastinha, já com uma catarata muito avançada e sem auxílio médico, sofreu o segundo derrame depois de sua expulsão. Passou os últimos anos de sua vida com a saúde muito debilitada, cego, esquecido pelo público e difamado pelos jornais da grande mídia. Morreu em sua humilde casa em Salvador, junto de sua esposa, em 1981, aos 92 anos de idade.
Após a morte de Pastinha, a luta de Angola ficou em profundo luto. O Brasil se tornou um terreno muito infértil para a capoeira tradicional, o que isolou e enfraqueceu os mestres aqui presentes. A maior parte dos mestres, inclusive discípulos de Pastinha, migraram para o exterior – como Europa e América do Norte – e lá perpetuaram com maior sucesso os seus ensinamentos.
Mestre Pastinha viveu sua vida pela capoeira e, mais, mesclou todo o seu ser com o corpo e a mente do capoeirista. Ele foi o reflexo de sua época: dos tempos amargos dos ex-escravos, com toda sua malícia, sabedoria e alegria, sobrevivendo o dia a dia no campo individual, até os tempos atuais resistindo aos ataques constitucionais da burguesia que teimavam em destruir a tradição negra de Angola, sobrevivendo o dia a dia no campo coletivo, com a mesma malícia, sabedoria e alegria.
Escrevo esse artigo pela lembrança da arte da classe trabalhadora, pois é ela que nos mantém vivos, ativos e fortalecidos contra as opressões diárias da exploração e da perseguição. Que não morra a vela que foi mantida acesa por tantos séculos por tantos mestres capoeiristas e que ela evolua conforme evolui nossa classe
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